quinta-feira, 30 de junho de 2011

Durante

O vazio.
O silêncio opressor. Ensurdecedor.

O espaço ocupado com nadas.
Os móveis, as cadeiras, a desempenharem o seu papel.
A montarem um cenário.
Um cenário sem peça. Sem guião. Sem personagens.
Sem objectivo nem fim.
Sem nada.

Nada, só nada.
Nada que me enlouquece.
Nada que me congela.
Nada que me obriga a esperar por tudo.
Porque já não existe mais nada.

As luzes que iluminam uma escuridão que não deixa de existir.
A escuridão que me permite esperar.
A escuridão que me traz a promessa de uma luz verdadeira.
A escuridão que me esconde o que já não quero ver.
A escuridão que me acompanhou.
Até voltar a haver luz.

As rotinas porque existem.
O dia-a-dia que finge ser sempre igual.
As pequenas conquistas com que me enganei.
O segundo plano.
A aceitação do segundo plano.
De mim em segundo plano.
Numa peça que era a minha.
Naquela manhã acordou novamente com o gosto a azedo na boca. Sentiu-o mal acordou. Já não era frequente mas ocasionalmente ainda acontecia e quando acontecia era mau. Precisava sempre de uns minutos para o fazer desaparecer. A melhor maneira era começar o dia. Fazer arrancar a rotina. As coisas reais de todos os dias. Foi tomar duche e preparar-se para sair. Era um dia cheio e não queria atrasar-se. Arranjou-se como de costume, vestiu-se como de costume, deu comida aos peixes como de costume, fechou a porta como de costume. Mas por qualquer razão naquele dia o gosto azedo na boca não passava.

Ela estava habituada a esse gosto. Ela sabia que em alturas de maior pressão ele podia aparecer. O azedo vinha das imagens que ela via. Das imagens que lhe apareciam à noite. Sempre iguais. Uma e outra vez. Uma e outra vez as mãos que a agarravam. Uma e outra vez as palavras que a impediam de avançar. Uma e outra vez a opressão. A obrigação. O pânico de estar num beco sem saída. O pânico de não conseguir livrar-se. De não conseguir fugir.

Na primeira vez que aconteceu ela ficou assustada. Mais do que o gosto a azedo sentiu o medo da possível realidade. Acalmou quando percebeu que as imagens apenas estavam na sua cabeça. Os sons. Que não a deixavam fugir. Que a prendiam e a agarravam a uma realidade que já não era a dela. Mas que não a deixavam esquecer que um dia fora.

Nessa primeira vez bastaram 5 minutos para o alívio lhe enfraquecer o coração de agradecimento. Apenas em 5 minutos tudo desapareceu, as imagens e com elas o gosto. Apenas em 5 minutos tinha regressado à sua realidade.

Mas isso foi da primeira vez. Depois dessa muitas houve. Ela acabou por se habituar porque sabia que o azedo era o gosto do medo. E ela só tinha medo quando não estava acordada. O azedo desaparecia em 5 minutos e com ele o medo. Mas desta vez, desta última vez, os 5 minutos não foram suficientes.

O dia passou. Um dia em tudo normal para ela, menos no sabor que nem por um segundo a abandonou. Menos no medo que o sabor lhe trazia. No medo que crescia com a permanência do sabor. No medo que desta vez existia com ela acordada.

Não tinha alternativa. Sabia que não queria viver com esse gosto, com esse medo. Sabia que o azedo já não fazia parte da sua vida. Sabia que nunca permitiria que voltasse e invadisse a sua realidade. Tinha que o matar. Acabar com ele de uma vez por todas. E este seria o dia.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Joaquim tinha uns óculos. Grandes e pretos. Pareciam óculos normais mas não eram. Eram muito especiais. Com aqueles óculos o Joaquim via tudo cor-de-rosa. Se tirava os óculos não via nada. Se punha os óculos via tudo cor-de-rosa. Ou nada ou rosa. Não lhe agradava mesmo nada isso. Preso no labirinto do rosa. E não eram só as revistas ou as panteras que ele via cor-de-rosa. Era tudo. O Joaquim pensou que talvez fosse dos óculos. Trocou de óculos vai para mais de 5 vezes e nada. Cor-de-rosa 5 vezes. Várias tonalidades de cor-de-rosa é verdade mas sempre cor-de-rosa.

Não foi sempre assim. O Joaquim via as cores todas no início. No início e no meio. Da vida. Da sua vida, claro. Que ele não se segue pela vida dos outros. Era o que faltava. Foi a dada altura que começou a ver tudo cor-de-rosa. E se bem se recorda nem foi numa altura em que mudou de óculos. Claro que não tem a ver com os óculos. Tem a ver com ele. Mas o Joaquim bem dá voltas à cabeça mas não chega lá. Não consegue perceber porquê.

O pior é que com o cor-de-rosa o Joaquim ouve uma musiquinha de fundo. Como se a sua vida de repente passasse a ter banda sonora. A principio começou a ouvir uma música ao longe. Pensou ser algum vizinho ou música na rua. Mas não. Deitou-se a ouvir a música e acordou a ouvir a música. Ora não podia ser um vizinho a ouvir sempre a mesma música. O Joaquim ficou para morrer. Primeiro o rosa depois a música. Mas começou a perceber que a música era a sua música preferida. Aquela que mais gosta de ouvir quando está bem. Aquela que o faz abanar a cabeça. Que o faz sorrir para o mundo. Mesmo que esteja cor-de-rosa. Principalmente quando o vê cor-de-rosa.

Finalmente o Joaquim percebeu que tinha sido ele a escolher o rosa. E a música. Já lhe tinham dito que ele podia ver a vida como muito bem entendesse. Mas ele não acreditou. Ele achava que a vida tem as cores que tem. E que ele tinha de a aceitar assim e mais nada. Mas começou a desconfiar que aquela ideia lhe tinha ficado na cabeça e que finalmente ele tinha feito uma escolha. Não foi preciso nenhum acontecimento solene e importante. Não foi preciso nenhuma frase marcante. Nenhum empurrão de ninguém. Um dia aconteceu. O cor-de-rosa e a música. E agora o Joaquim vive feliz com a sua escolha. Afinal a rosa sempre foi a sua flor preferida.